Entre o final de 2015 e começo de 2016 eu estava me preparando para um mochilão pela América do Sul. Seguiria de São Paulo para o Uruguai, e dali subiria até a Colômbia ou Venezuela.
Era meu único pensamento antes de dormir, ao acordar e ao sonhar. Minha vontade de viver se resumia a esse plano. Eu partiria em junho de 2016.
Como sabem, em abril de 2016 meu pai faleceu, deixando eu e minha irmã de 13 anos, na época, sozinhas. E com isso meu mochilão se tornou algo impossível.
Mas até hoje o chamo de “meu” mochilão. Como algo pode ser meu se nunca aconteceu?
Uma amiga, a Letícia, para quem eu havia contado sobre meus planos, me entregou esse caderninho abaixo no meu aniversário em 2017.
Eu fico feliz de ler, mesmo aqui em casa, suas palavras, pois me mostram o carinho e o amor de uma amiga muito querida.
Mas eu penso também nos meus sonhos que precisei abdicar. Eu não pensei duas vezes ao deixar minha mochila de lado. Tudo aconteceu tão rápido, também.
A Le, que me conhece tanto, escreveu que sentia que eu estava buscando a mim mesma e que eu voltaria outra pessoa dessa experiência.
Ela tinha razão. Eu me via perdida e queria encontrar minha essência. E a morte de meu pai com todos os acontecimentos que se sucederam a isso, me fez percorrer caminhos e jornadas de autoconhecimento, estando dentro de um apartamento pequeno na cidade de São Paulo, de uma forma que talvez nenhum mochilão poderia me fornecer.
E eu sai dessa experiência uma outra pessoa mesmo. Ainda não sei bem quem, mas eu a sinto pulsando e dançando aqui dentro de mim.
A vida me trouxe, de uma forma triste, todos os aprendizados que eu achava que só a estrada me mostraria. E naquela época eu nem estava pronta. Penso, hoje, que ligaria para meu pai uma semana depois de partir, pedindo ajuda.
Eu fui frustrada tanto pela morte repentina dele, tanto pela morte de um sonho. E eu carrego esses dois lutos comigo ainda hoje.
Claro, eu ainda pude viajar e conhecer lugares que eu nem teria conhecido no, não tão meu assim, mochilão.
Mas se alimentar diariamente por uma ideia e vê-la cortada, sem dó nem piedade, dói muito. Lidar com uma frustração é difícil.
Hoje, olhando do futuro para aquela situação, eu entendo perfeitamente o que a vida me dizia e me pedia. Meu caminho era outro.
Só que vejo hoje, também, tantos de nós com sonhos de vários tipos sendo cortados abruptamente por conta de uma pandemia, sem sabermos quando e se as coisas regressarão, que me volta todo aquele sentimento que eu reprimi sobre o meu (não adianta, sempre chamarei de meu) mochilão.
A primeira coisa que vem à mente: “E SE?”
Como seria meu mundo se eu houvesse partido? Se meu pai estivesse vivo? Se eu tivesse deixado minha irmã com meus tios?
Todas as possibilidades que poderiam acontecer se concretizássemos nossos sonhos.
Assim como minha amiga perguntou no caderninho: Onde eu estaria? Estaria me alimentando bem? Teria feito amizades? Que dia eu leria aquela terceira folha? Quantas horas de sono eu conseguiria por dia?
Será que um dia poderei realizar esse sonho? Ele ainda me caberá? Porque a vida precisa de mim aqui e não em outro lugar? Ou ela só é injusta mesmo? Ou eu que não sou merecedora? Quando a Gi voar, será que eu também voo? Pra onde ir quando não tiver mais pra onde voltar?
Deixar um sonho de lado não deveria ser visto apenas como algo que não deu certo e que precisamos superar.
Não. É um sonho. Somos, desde pequenos, imersos em histórias que nos dizem o valor de sonhar com algo. Quando isso acaba/morre, é necessário lidar com o luto.
“Ah, mas não é como se perdesse um ente querido”.
Não, não é, mas falando com propriedade sobre alguém que já perdeu mais entes queridos do que aguentava, e também perdeu um grande sonho: você viverá um processo de luto nas duas situações.
Eu Nunca… lidei com o luto! Como a série da Netflix tratou tão bem o tema.
Você vai entrar em negação, dizendo que está bem e “acontece”. Vai sentir uma raiva te consumir, que pode, inclusive, se manifestar em outras áreas e com outras pessoas que não tem nada a ver com isso. Poderá cair em depressão, vai querer pedir à Deus, ao Universo, ao seu Orixá, à Buda, à Rihanna ou a quem quer que seja, que te conceda uma forma de conseguir aquilo que perdeu. E, quem sabe mais pra frente, aceitará o que aconteceu.
A diferença entre perder uma pessoa e um sonho é que uma pessoa não é substituível. Tudo bem, alguns sonhos talvez não sejam também. Mas um sonho antigo pode voltar anos depois, com outra maturidade e com mais paciência para concretizar-se.
E mesmo que ele não volte, podemos preencher nossas vidas com novos sonhos. Sonhar nunca é demais. Tomando as doses necessárias de realidade, tá tudo certo.
Se algo morreu para você, tenha seu tempo. Não passe por cima e finja que não deveria se importar tanto assim. Se era importante, você deve se importar, oras.
Vivemos num mundo repleto de pessoas frustradas por sonhos que não se concretizaram, e que se acham adultos demais para se importar. Ou ouviram que ficar triste por algo desse tipo, seria ridículo.
Daí descontam suas raivas em pessoas e situações que não merecem. Daí caem doentes por um luto não vivido e nunca entenderão de onde vem tamanha tristeza que não os abandona nunca. Tudo isso porque era necessário bloquear uma dor que nos disseram ser errada de sentir.
Belo texto