Comecei a assistir a série Eu Nunca… da Netflix achando que seria apenas uma comédia romântica adolescente como estamos acostumados por aí.
E qual a minha surpresa ao maratonar a série, que é curtinha, com 10 episódios de menos de 30 minutos de duração cada um, e ver de pano de fundo o tema do luto sendo retratado de forma tão real.
CONTÉM SPOILERS!
Devi é uma garota filha de pais indianos, mas que abraça totalmente a cultura norte-americana. A série começa contando que a garota perdeu o pai em uma situação muito traumática: ele teve um ataque cardíaco durante sua apresentação de orquestra da escola.
O choque foi tão grande que Devi perdeu a mobilidade de suas pernas por um período.
Superficialmente parece que a menina é apenas uma adolescente comum que quer ser popular e ter a atenção do rapaz mais bonito do colégio.
E é aí que a série surpreende! Por trás dessa obssessão de perder a virgindade com Paxton, está uma filha enlutada em negação com a morte do pai.
As atitudes que ela tem em todos os relacionamentos de sua vida (com a mãe, as amigas e os crushs) podem parecer muito egoístas, paranóicas, possessivas e mimadas. E são. Mas não por serem traços de sua personalidade.
Na série só conhecemos a Devi enlutada, não sabemos como ela era antes do pai falecer. E a trajetória que acompanhamos não é a do envolvimento amoroso dela, e sim do fato da garota aceitar o luto e lidar com ele.
Ela tem muita raiva dentro de si por tudo que aconteceu e da forma que ocorreu. É muito natural, mas ninguém sabe porque ninguém quer falar sobre o luto. Muitas vezes ninguém sabe como falar sobre o luto. A morte não nos é ensinada.
Ninguém chega para nós quando crianças e conta sobre a morte, que ela acontece, não importando a idade. Hoje em dia deixamos esse papo para terapias depois do luto acontecer, antigamente nem isso, porque terapia era coisa de gente doida.
Existe um tempo e um processo, mas é tão comum que caiamos numa armadilha e pensemos que já sofremos a morte da pessoa que amamos, afinal, “já deu tempo”. Sendo que esse tempo não tem prazo e muitas vezes estamos presos no primeiro e segundo mais comuns estágios de um luto: a negação e a raiva.
Nós nem passamos deles e já achamos que acabou.
Um sinal claro da negação é quando vemos no seriado Devi encontrando um coiote e determinando que era o espírito de seu pai. Ou quando sua psicóloga começa a introduzir o assunto da morte de seu pai na conversa e a menina muda de assunto achando que tem algo mais urgente e importante para resolver: o sexo com Paxton.
É muito comum buscarmos colocar o foco de nossas atenções para outros assuntos, fugindo do que realmente é preciso se concentrar. Afinal, se eu não falar, não aconteceu, eu não vivi aquilo.
Já a raiva encontra-se diluída por todos os episódios, já que o temperamento da menina é sempre explosivo e acaba descontando em todos ao seu redor.
Isso não é legal e não é certo, mas alguém sabe lidar com a morte de uma pessoa que tanto amava? Alguém nos ensina como passar por esses momentos? Tem como ensinar isso?
Acredito que não. Eu perdi praticamente minha família inteira em momentos distintos e de forma tão traumática, ainda assim, estando, aos olhos dos outros, “mais preparada” para a morte, não reagi bem à última morte que presenciei.
Somos seres humanos, vivendo dentro de um pedaço de carne, com sentimentos a flor da pele o tempo inteiro. Às vezes até escondemos essas nossas loucuras internas, mas na presença de um evento traumático, fica difícil se controlar.
E o evento traumático não é apenas o evento isolado, pelo contrário, ele é revivido em nossa mente todos os dias e deixa marcas muito profundas.
Tem quem lide com o luto se anestesiando e caindo em depressão profunda numa cama, tem quem lide com o luto explodindo tudo que vê pela frente. De qualquer jeito, são formas nada saudáveis.
Para lidar com o luto tem que haver primeiro a aceitação. Mas mesmo que digamos em voz alta: “ok, essa pessoa se foi e a vida continua”, continuar não é tão simples quanto formular essa frase.
Eu Nunca…, na Netflix, mostra que voltar sua atenção e fazer com que seu maior problema seja o fato da garota não conseguir a atenção do menino popular, só faz Devi por um véu sob a morte de seu pai, que continua a acompanhando onde quer que ela vá, se manifestando na forma de um coiote ou de comportamentos abusivos com suas amigas.
E quanto mais a história se desenrola, percebemos que Nalini, mãe de Devi, também não aceitou o luto. Isso causa um enorme abismo entre mãe e filha, que não se entendem e não conversam.
Ainda mais quando descobrimos, em flashbacks no penúltimo episódio, que na noite em que seu pai morreu, Devi e sua mãe brigaram e a menina a escutou numa conversa com seu pai dizendo que ele deveria criá-la sozinho, pois a achava muito teimosa para ser sua filha.
São muitas coisas que a mente dela não quer lembrar e pra isso precisa caprichar em manter o foco em outros assuntos.
Os planos que não dão certo também são lutos que precisamos viver
Sua mãe que não consegue resolver mais seus problemas, nem os da filha, acha que mudando para a Índia tudo será melhor. O que com certeza não seria, visto que as adversidades que passam estão dentro delas e as acompanharão onde quer que estejam.
No último episódio de Eu Nunca… vemos Nalini finalmente mostrando vulnerabilidade numa conversa com a psicóloga da filha. É muito difícil descer desse lugar de fortaleza quando se precisa tomar conta de tudo e todos.
E é a terapeuta que resume como ela e a filha podem abraçar esse luto que ambas vivem, mas que as separou ainda mais: “pode ajudar a Devi saber que também está difícil pra você (…) Que desmoronar seja exatamente o que sua família precisa para se unir novamente“.
Quando a mulher vai contar para a filha que pretende jogar as cinzas de seu pai na praia, sua primeira reação é a de pânico. Ela faz comentários ácidos e negativos, porque não aceita. Afinal, espalhar as cinzas é uma simbologia para aceitar a morte.
Ela entende que não se acha pronta para isso e chora, começa a desmoronar, mas aceita se juntar à mãe e à prima na praia. Trazendo um momento bem frágil entre Nalini e Devi sentindo o luto do marido e do pai.
E essa fragilidade que, creio eu, irá unir mais ainda essas duas.
Uma segunda temporada de Eu Nunca… já está encaminhada pela Netflix e estou ansiosa justamente porque no fim elas jogam as cinzas do pai no oceano, aceitando e sentindo a morte, juntas.
Espero poder ver uma nova Devi, que começou a processar o luto por seu pai, sem a raiva e a negação. Podendo dar espaço para atitudes mais eloquentes e empáticas, além de um discernimento maior, que quando estamos cegas pela raiva de um luto, não temos.
E uma dinâmica familiar diferente, mais leve e harmônica, mesmo que as brigas entre uma mãe e uma filha adolescente ainda estejam presentes, afinal, isso sim é bem comum em todos os lares.
Não mencionei os outros personagens que tem histórias incríveis narradas em segundo plano em Eu Nunca… pelo fato desse texto ser focado na questão do luto. Mas a série acertou em cheio na descrição e no aprofundamento de todos os personagens.